A FUSÃO NETFLIX–WARNER É UM RISCO EXTRATERRESTRE PARA O ENTRETENIMENTO

A FUSÃO NETFLIX–WARNER É UM RISCO EXTRATERRESTRE PARA O ENTRETENIMENTO

A anunciada aquisição da Warner Bros. pela Netflix representa um dos movimentos corporativos mais controversos e potencialmente destrutivos da história do entretenimento moderno. Embora fusões e aquisições sejam comuns em Hollywood, esta operação em particular reúne características que extrapolam qualquer precedente conhecido. Não se trata apenas da venda de um estúdio, trata-se da transferência de um século de patrimônio cultural, artístico e narrativo para uma empresa cuja atuação é concentrada em apenas um eixo: dominar o audiovisual global. É uma fusão que desloca o equilíbrio do mercado de forma tão violenta que já provoca reações políticas, regulatórias e institucionais. E com razão.

Para começar, é fundamental compreender a assimetria entre os players envolvidos. A Warner Bros., junto com a HBO, é responsável por alguns dos pilares do cinema e da televisão mundial. Seu catálogo combina legado artístico, grandes franquias e um ecossistema criativo que formou gerações. A Netflix, por sua vez, opera com lógica oposta: volume, velocidade, algoritmos e decisões baseadas em retenção. Juntas, essas culturas não se complementam, colidem. E essa colisão teria o efeito de transformar a Warner, possivelmente, numa produtora rebaixada e subordinada a métricas de engajamento, sufocando a alma cinematográfica que moldou a história do audiovisual.

A escala do risco é tão grande que exige analogias igualmente grandiosas. Uma fusão desse tipo é comparável a Nintendo comprar a divisão Xbox da Microsoft, um movimento que concentraria o mercado de games numa única linha dominante, eliminando diversidade tecnológica e narrativa. É também equivalente a Amazon comprar a Azure, absorvendo a segunda maior nuvem do mundo e criando um oligopólio computacional sem precedentes. Nos dois casos, seria impensável permitir que um líder absoluto absorvesse um competidor direto em seu próprio ecossistema. E ainda assim, o impacto Netflix-Warner pode ser ainda mais devastador, porque o entretenimento não é apenas um produto: é cultura, identidade, memória coletiva.

Para ilustrar por que isso é tão grave, basta comparar esse cenário com outro possível comprador: a Paramount. Embora menor, a Paramount representa um modelo de negócio híbrido e equilibrado, com TV aberta, streaming, cinema e um ecossistema diversificado. Uma aquisição desse porte fortaleceria sua capacidade de competir sem ameaçar o mercado como um todo. A compra pela Paramount não concentraria poder, e sim distribuiria melhor a disputa entre os players existentes. O mesmo vale para gigantes como Disney e Amazon, empresas com múltiplos braços industriais, parques, merchandising, esportes, varejo, tecnologia, cloud, que não dependem exclusivamente do audiovisual para sobreviver. Mesmo que engordassem com a Warner, não se tornariam hegemônicas em um único setor.

A Netflix, por outro lado, é um pure player. Seu negócio é exclusivamente entretenimento. Toda sua receita, todo seu poder e toda sua estratégia giram em torno de uma única variável: controlar o que o mundo assiste. Injetar a Warner nesse núcleo não “cresce a empresa”: hipertrofia seu poder de forma instantânea. O que ocorre não é expansão, e sim dominância vertical. A empresa passa a controlar catálogo, legado histórico, produção contemporânea e distribuição global. Não existe paralelo na história recente do audiovisual. É a mesma diferença entre uma empresa diversificada ganhar força e um predador especializado ganhar massa muscular explosiva no único habitat em que vive.

O problema se agrava porque o modelo da Netflix não foi construído para preservar identidades criativas, e sim para maximizar eficiência. A HBO, com sua tradição de excelência artística, corre risco direto. A Warner, com sua ousadia cinematográfica: Mad Max, Duna, Matrix, Harry Potter, pode ser engolida pelo pragmatismo algorítmico. E o público perde. Perde diversidade, perde inovação, perde o processo lento e cuidadoso que constrói obras-primas. Ganha-se, no máximo, um oceano de conteúdo padronizado.

Por fim, a fusão representa uma ameaça econômica e cultural que ultrapassa o debate empresarial. Trata-se de uma tentativa de concentrar poder narrativo num grau que nenhuma democracia moderna deveria aceitar sem amplo escrutínio. É por isso que diversos setores da sociedade: especialistas, legisladores, criadores, consumidores e defensores da concorrência já se movimentam em diferentes frentes para contestar a operação. Em um cenário onde fusões muito menores sofreram bloqueios recentes, como Nvidia e ARM, Amazon e iRobot ou Meta e Giphy, é plausível que este caso também seja alvo de forte resistência institucional. E é essencial que seja assim: permitir que uma única empresa controle passado, presente e futuro do audiovisual é incompatível com a diversidade cultural, com a livre concorrência e com o interesse público.

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Thallisson Silva
Engenheiro de Software, Especialista em Automações e Jornalista

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